CAÇA – PL DA CRUELDADE!
Recentemente veio à tona novamente a tramitação de projeto de lei na câmara dos deputados sobre a liberação de caça esportiva no Brasil, em todo seu território nacional.
Além de uma prática cruel e que visa apenas atender os interesses de uma parcela sádica da população brasileira, esse projeto de lei beira a inconstitucionalidade.
A lei de crimes ambientais (9605/98) define em seu artigo 32 que é crime ambiental: “32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.”.
Há ainda a lei de proteção a fauna (LEI N° 5.197, DE 3 DE JANEIRO DE 1967) que também proíbe a perseguição, apanha, caça de animais silvestres.
Diversas leis regionais (estaduais e municipais) também proíbem esse tipo de prática, e vale lembrar que, se em caso de contrapontos entre as leis, no direito ambiental prevalece a lei mais restritiva e de maior proteção.
Há portarias dos órgãos ambientais, a declaração Universal dos direitos dos Animais da Unesco (1978), e ainda, mas não menos importante o bom senso e a implicação das teorias de bem estar animal.
Essa PL tem voltado a ser debatida utilizando como manobra de publicidade uma frase bem recorrente como “manejo de fauna”, porém a proposição está longe de ser de teor ambientalista e conservacionista, pois ela pretende regulamentar a caça esportiva de animais nativos silvestres no Brasil (prática já proibida nas leis supracitadas) por puro e simples prazer de matar. Sim, prazer em matar seres indefesos, prazer em perseguir, prazer em ajudar a jogar uma pá de cal no pouco que resta de políticas públicas de conservação ambiental.
Um manejo de fauna é definido a partir de estudos qualitativos e quantitativos baseados na dinâmica populacional de determinada espécie por determinada região, levando em conta seu nível trófico, emigração e imigração de indivíduos, nicho ecológico e até mesmo estudo genético e diversos outros fatores. São anos e dados coletados por profissionais da área (e não deputados 😉 ) para definir toda a ecologia de uma população, uma comunidade, um ecossistema, e após tudo isso, SOMENTE APÓS TUDO isso, depois de anos de estudo, conseguimos avaliar se determinada espécie deve ser subjugada a uma determinada técnica de manejo de fauna (e diversos especialistas defendem outras formas de manejo de fauna alternativas à caça). Não é simples, não é fácil um estudo desse, e os poucos que existem no Brasil já demonstraram que nossa fauna silvestre está em declínio por diversos motivos, como ocupação humana, desmatamento e caça e tráfico de animais e produtos derivados destes. Ou seja, ao invés de se criar mecanismos legislativos afim de incentivar programas de conservação de espécies, vamos criar então uma política pública que incentiva a matança.
O biólogo Ricardo Bovendorp faz parte de uma equipe da UNESP que estuda diversos mamíferos em áreas de mata atlântica, acompanhando principalmente a dinâmica populacional de grandes mamíferos, e nesse estudo que foi publicado na revista Animal Conservation concluiu-se que houve a extinção local de animais de grande porte devido a caça, mesmo sendo proibida por lei. Nota-se também a fragilidade do bioma Mata Atlântica por conta do declínio das espécies.
Em outro estudo publicado na revista Science Advances observou-se que o declínio de populações interfere diretamente na capacidade de retenção de gás carbônico feito pela floresta atlântica. A caça gera um efeito cascata de apenas pontos negativos, e partindo da premissa que o Brasil não tem possibilidade de fiscalização e controle da atividade não há nenhuma dúvida que esse cenário apenas vai gerar mais e mais caos ambiental.
A única forma de caça que poderia ser debatida é a caça por subsistência, e mesmo assim o manejo deve ser planejado regionalmente e acompanhado, e pesquisadores recomendam que isso seja levado em conta somente para populações tradicionais da Amazônia, e que isso é impensável e absolutamente impraticável no resto do Brasil.
A caça esportiva ou para venda de produtos advindos desta atividade causou entre o período de 1904 a 1969 a morte de mais de 23 milhões de animais nos estados de RO, AC, RR e AM, segundo artigo publicado na Science Advances, sendo desse total, espécies de grandes mamíferos, inclusive de onças-pintadas, que até hoje não conseguiu recuperar suas populações.
Um outro artigo publicado na Royal Society Open Science levantou dados em diversos países, onde a caça é permitida, sobre as populações de grandes mamíferos e avaliaram que por conta da prática (mesmo permitida em muitos lugares) 301 espécies de mamíferos estão em risco de extinção. Desses países avaliados somente 1 espécie em 1 país tem população controlada pela caça (veado-galheiro – Odocoileus virginianus, no EUA), com grande fiscalização e regulamentação da prática. Ou seja, fica tudo na teoria, e o monitoramento da atividade não ocorre em mais de 99% dos casos.
Esse projeto de lei anda em consonância com o retrocesso ambiental que ocorre no país. Simplificação e menos exigências ambientais em licenciamentos, anistias a empresas culpadas por “acidentes” e crimes contra o meio ambiente, completo desrespeito dos princípios da PRECAUÇÃO e PREVENÇÃO os quais são definidos no direito ambiental e o desrespeito à vida, de animais humanos e não humanos. Colocando-nos num pedestal irreal que não seremos atingidos por todos os danos ambientais que causamos.
As pessoas que são a favor dessa PL esquecem-se do efeito de cascata trófica que determinada espécie pode desencadear em um ecossistema. E de um jeito ou de outro vai atingir a nossa espécie. Vamos quebrar interações ecológicas existentes e gerar outras que não deveriam existir, derrubaremos o escudo de proteção que toda a fauna e flora silvestres no propicia.
“A proibição da caça no Brasil não parece oferecer ganhos práticos em relação à conservação das espécies e manutenção de habitats.“ – Nilson F. Stainsack (PP-SC). Fonte: Agência Câmara de Notícias. Essa é a declaração do deputado que apresenta essa PL. Mas quais são os ganhos práticos da liberação da caça no Brasil senhor deputado?
Conhece as diretivas e programas de conservação de espécies executados pelo país todo?
Qual o embasamento científico que o faz ter esse posicionamento?
Eu respondo: NENHUM. Só o fato do excelentíssimo achar que “não parece oferecer” mostra o quão falta estudo e argumentos para tentar justificar prática tão arcaica.
Tal projeto de lei proposto parte do pressuposto que o órgão federal ambiental definirá quais espécies poderão ser caçadas, local, quantidade de animais por caçador e fazer a fiscalização de tudo isso, como se o poder público federal tivesse braços o suficiente para definir tais quesitos e fiscalizá-los. Qual o tipo de amostragem que será utilizada para verificar essas populações que estão literalmente na mira dessa PL? Será monitoramento por tempo ou por captura? Quem serão os entes fiscalizadores? Como será feita a punição aos que desrespeitarem a lei? Qual a periodicidade dos estudos e levantamentos? Ou seja, vai virar um deus nos acuda. E mais, 180 dias não é o suficiente para esse tipo de estudos tão minuciosos a ponto de dizer “a espécie X pode caçar e a Y não”. Isso porque não estamos nem entrando no quesito de espécies migratórias ou que cubram grandes áreas.
Segundo o Índice Planeta Vivo 2020 entre os anos 1970 e 2016 houve uma redução média de 68% nas populações monitoradas de mamíferos, aves, anfíbios e peixes, causada principalmente por fatores como obras de infraestrutura, agricultura e pesca, entre outras práticas de produção que pressionam ambientes naturais. Agora imagina liberando a caça, será mais uma pressão ambiental sobre essas mesmas populações e tantas outras, que não conhecemos os números pois não foram abordadas no estudo.
As populações são dinâmicas, e o estudo populacional de determinada espécie é feito in loco, restrito a determinadas áreas, com amostragens para comparação quantitativa, comportamental e principalmente quais são os efeitos de determinada espécie num determinado local. E se ainda falarmos de alguma espécie que ocorre em todo o território nacional essas amostragens e estudo devem ser mais específicos ainda e mais direcionados. Uma onça-pintada do pantanal pode ter um nicho ecológico diferente da uma onça-pintada no Vale do Paraíba. Será mesmo que o poder executivo federal vai executar isso? Não vai.
“A falta de regulamentação e a aversão ao tema, que é extremamente polarizado, retira a possibilidade do Estado brasileiro conhecer a realidade da fauna, suas limitações e possibilidades de manejo”, argumenta o autor, deputado Nilson F. Stainsack (PP-SC).Fonte: Agência Câmara de Notícias
Não senhor excelentíssimo deputado. Não retira possibilidade alguma. Se o poder executivo federal já não tem subsídios e condições de conhecer essa realidade, não terá quando a caça for liberada. E sabe porquê? Porque primeiramente a conservação de espécies e ecossistemas não é prioridade do governo, tão pouco do estado. Segundamente que hoje basta delegar determinados profissionais que fazem parte dos órgãos ambientais para fazer esses estudos, mas não o fazem, pois não é simples, não é rápido, então podemos presumir que se agora já não é feito, imagina depois, com o acúmulo de funções que essa PL engloba para tais agentes.
E mais, esse projeto de lei desconfigura maus-tratos a cães que sofram lesões e machucados durante a caçada, desde que sejam atendidos. Não há somente a intenção de liberar a morte de animais, como também há estimulação de quase uma rinha entre animais domésticos e fauna silvestre.
A justificativa dessa PL aborda o caso do javali (Sus scrofa) como exemplo de população predatória, sendo essa espécie de grande população de alta competitividade com a fauna silvestre nativa do Brasil. Mas esquecem de falar que a introdução dessa espécie de javali foi de caso pensado no Brasil para estimular a caça no país. E também omitem o fato de que, desde a liberação da caça desse animal a população está aumentando em diversos locais do país e há o registro de apanha, captura e posterior soltura de filhotes desse javali para justamente estimular a caça. Controle populacional de espécie predatória? Onde?
Esse escrutínio de projeto de lei não tem embasamento científico, os dados não existem, informações são omitidas na própria justificativa da PL, coloca em risco animais que estão ameaçados de extinção ou não (porque meus amigos, na hora da caça pega o que passar na frente, não tem diferenciação não. Tem gente matando cateto falando que é javali), não tem absolutamente nada de conservacionista e preservacionista nesse discurso. Tudo subterfúgio para aumentar a atividade que é o prazer pela morte e aumentar a posse de armas pelo país.
E no caminho que segue essa carruagem, fica cada vez mais claro que seremos sobrepujados pelos problemas que estamos criando e pelos problemas que elegemos.
E o custo será de vidas, humanas e não humanas.
Thaynara Siqueira Baumgartner
Bióloga
CRBio 117701/04-D
Comments